Seu cenho franziu-se e seu ar antes descontraído tornou-se pesado e grave. Seus dentes rangeram e, por entre os lábios semicerrados, praguejou contra sua desatenção, que poderia significar uma morte indigna de seus feitos.

Talvez essa fosse a última vez que se distraía dessa forma, talvez nunca tivesse oportunidade de corrigir tal erro, já que estava prestes a ser empalado por uma seta.

Seus músculos se enrijeceram por sob a armadura de metal, que não resistiria ao impacto de um virote disparado de uma besta a uma distância tão curta. Seu interlocutor não parecia ter na arma um brinquedo apenas.

Seria um tiro letal.

Contudo, um filho de Áster não se entrega à morte sem levar consigo um pouco das tripas de seus inimigos. Seus olhos se enchiam de fúria selvagem e seus dedos já se preparavam para sacar o punhal em seu cinto quando ouviu o sotaque familiar nas palavras do oponente:

─ Alto, cão! Se não quiseres ter tua pança perfurada pela madeira das florestas ancestrais.

Karizem viu que podia tentar usar as palavras enquanto pensasse em uma forma de fugir da situação em que estava. O rapagão à sua frente talvez não conseguisse conter o ímpeto de usar sua arma, mas tinha que tentar.

─ Contenha tua ira! Abaixa tua arma, guerreiro! Sou irmão de teu sangue e retorno ao lar depois de muitos invernos fora, lutando nas batalhas para além das montanhas e dos vales pantanosos do rio Navctha.

As palavras, ditas em tom solene, levaram algum tempo para sair da boca do viajante, ressecada e endurecida pela tensão de seus músculos faciais e pela forma pausada e forçosamente cordial como foram ditas.

Não queria provocar o oponente, que sem dúvida gostaria de ter um pouco de sangue para animar suas histórias na noite, durante o banquete defronte da fogueira tribal, onde os velhos e os jovens, os homens e as mulheres se reuniriam para cantar as batalhas celebrando o fim do inverno que já ia.

O jovem de cabelos trançados parecia ter pouco mais da metade de sua idade. Não o reconhecia dos tempos em que ele próprio ansiava em ter a oportunidade de cortar a carne do primeiro inimigo que encontrasse, quando então resolveu sair em busca deles.

Sem dúvida, ele não estava sozinho. Devia haver outro em meio às árvores lhe dando cobertura. Esse era o costume quando se postavam sentinelas em Ith.

De súbito, outra sombra saiu de trás de um tronco, como se os pensamentos do bárbaro tivessem sido ouvidos, tornando desnecessária a permanência em meio aos galhos.

Era igualmente forte, mas mais baixo que o primeiro e parecia ter mais idade. Seus cabelos eram castanhos claros com alguns fios prateados repuxados para trás e assentados com banha de javali como uma touca lisa, terminada num rabo de cavalo. Os cabelos presos eram símbolo dos Volka, um dos clãs de sua tribo. Karizem o reconheceu de imediato.

Trajava pele de urso confeccionada em colete marrom com tira de couro amarrada na cintura. Em um dos braços nus, um enfeite de bronze em forma de anel, onde se via, penduradas por correntezinhas, as duas presas maiores do urso que possivelmente se tornara a vestimenta que usava, além de alimento para toda a aldeia durante uma noite de festejos.

Tinha calças de couro, tingidas com folhas usadas para curtir a pele animal e que acabavam por lhe dar uma tonalidade esverdeada. Calçava botas de couro de lobo, também presas com tiras de couro. Usava pulseiras de bronze semelhantes às do seu parceiro.

Diferentemente deste no entanto, tinha o rosto coberto por curta barba castanha. Nas mãos, outra besta, já rearmada. Parecia certo que fora ela a realizar o disparo, devido ao pouco tempo entre a seta atingir o chão e a precipitação do primeiro homem ao solo.

Tinha ainda espada de lâmina larga enfiada em bainha de couro cru, já desgastada pelas intempéries, posta às costas, como era o costume de seu povo. Deu dois passos à frente e rudemente falou:

─ Que faz um cavalheiro sem o sotaque estrangeiro por estas florestas, tão distantes das terras do sul? Ainda por cima dizendo possuir o sangue de Áster nas veias? Responde, maldito senhor de escravos, para que possamos saber teu nome na ocasião de cuspirmos sobre teu cadáver.

Ser chamado de cavalheiro ofendeu mais à Karizem do que ser ameaçado de morte pelo interlocutor.

─ Contenha tua língua, animal de sangue quente! Podes matar-me, mas prometo que estarás em minha garupa, no cavalo Skulrjkard, no momento em que for para a terra dos mortos ─ vociferou o viajante de volta, com os olhos brilhando de fúria. ─ Não sou um cavalheiro e tão pouco o senhor de escravos que imaginas. Eu sou Karizem de Ith, nascido Karizem do Clã de Bittur e descendente dos gelados Reinos de Áster. Tenho a fúria do tigre dentes-de-sabre e carrego a marca do próprio cavalo sagrado de duas cabeças como símbolo de minha família, o mesmo Skulrjkard que levará a ti e a teus irmãos para os reinos sem luz, da encruzilhada depois da vida.

A baba lhe escorria pelo canto da boca quando terminou o que poderia ser sua fala de morte. Suas mãos estavam cerradas como punhos de pedra. Seus músculos retesados como os de um touro que dispara em direção ao rival da manada. As veias em seu pescoço tão saltadas que parecia estar sendo esganado por mãos invisíveis, tal a sua ira.

Mesmo desarmado, poderia trucidar meia dúzia de homens como os que tinha à sua frente. Nem que cada um deles, ao mesmo tempo, disparasse suas flechas em seu coração.

Não esmoreceria sem torcer seus pescoços. Nem que, pela única vez em sua vida, tivesse que rezar para um dos deuses da neve lhe conceder alguns poucos instantes mais de sangue circulante no corpo, para poder aplacar seu ódio.

Os olhos dos seus dois oponentes tiveram suas pupilas contraídas. Seus membros formigaram e relaxaram momentaneamente. As mãos começaram a suar e o ar pareceu ficar mais quente; leve tontura se apossou de ambos, devido ao sangue que desacelerara de repente.

Entreolharam-se.

O vento batendo nos galhos nus produzia o som como de milhares de risos gargalhantes na floresta. O tempo parou. Estavam atônitos; mas o mais velho encontrou, enfim, algumas palavras perdidas para dizer:

─ Se és Karizem, descendente do Clã do Cavalo Fantasma de Bittur, tira devagar o capacete, para que possamos reconhecê-lo. E se és quem dizes ser, deves me conhecer. Sou mais velho que Karizem quatro invernos. Eu próprio o vi partir há onze invernos junto com mais dez de nossos mais fortes guer...

Os cabelos castanhos escuros se revelaram abaixo dos ombros quando o elmo foi suspenso lentamente por sobre a cabeça. Viram então os olhos profundos, de cor escura, o cenho franzido e o nariz reto, viram o queixo quadrado, os lábios contraídos pela tensão e os dentes cerrados, brancos e alinhados. As palavras engasgaram na garganta trêmula do vigia quando viu o rosto familiar, bem mais moreno devido a outros climas que não os do norte, e com ligeiras marcas das muitas batalhas. Tinha os olhos furibundos de um leão da montanha.

Era o filho único de Hellducar, do sangue de Bittur. Karizem. O outrora “Espada Sem Bainha”, sempre pronta a ser usada, do Clã.

Perceberam então o escudo. Viram o pomo da espada com a efígie do Cavalo Fantasma. Mais que palavras, aquele viajante trazia indícios de que dizia a verdade, embora viesse com ricas roupas de terras distantes por debaixo da pele de búfalo, montado num garanhão negro e levando consigo dois outros cavalos cheios de coisas caras dos mercados abarrotados e cheios de lindas mulheres dos portos ensolarados da costa oeste.

─ És Karmiza, do Clã do Urso e filho de Jhor, o ferreiro. Um castrador de porcos dos melhores por toda Ith ─ trovejou o bárbaro de cabelos ondulados, relaxando um pouco ao ver que seus quase algozes se esqueciam de suas mortíferas armas de guerra, abaixando-as lentamente ao longo do corpo, como se o peso tivesse repentinamente aumentado. Contudo não retiraram os dedos dos gatilhos.

O mais novo estava visivelmente confuso e não sabia o que fazer. Olhava boquiaberto os gestos de seu companheiro mais velho. Titubeava, sapateando com passinhos curtos o chão abaixo de seus pés.

O sentinela de nome Karmiza resignou-se completamente e com um ar grave baixou os olhos por toda a extensão do corpo de Karizem. Quando os levantou, não estava mais impressionado. Estava de novo impávido e duro como são os habitantes das florestas do Norte. Seus olhos profundos pareciam relembrar fatos esquecidos em sua alma. Nada mais disse.

O jovem por sua vez acalmou-se e em seguida retirou a corneta do cinto, assoprando dois apitos fortes e longos. Estava anunciada a chegada do visitante.

─ Bem-vindo a Ith, Karizem ─ saudou Karmiza, sem um esboço de sorriso sequer, por entre os pêlos da curta juba hirsuta.

Virou-lhe as costas e passou a caminhar por onde antes seguia o cavaleiro.

─ Haskor, ajude o nosso conquistador recém-chegado a reunir seus cavalos ─ ordenou, enquanto desengatilhava finalmente a arma e se dirigia para trás de moitas sem folhas, ainda queimadas pelo frio, onde deveriam estar seus próprios cavalos.

As palavras inamistosas de Karmiza seriam normais para uma sentinela das florestas do Norte, não fosse o tratamento irônico empregado.

O jovem Haskor se apressou em reunir as rédeas dos animais, que ainda não haviam se afastado muito já que estavam amarrados uns aos outros, o que impedia de se aventurarem sozinhos, por vontade própria, mata adentro.

Colocou a besta desarmada pendurada no ombro por uma correia. Guardou com agilidade a seta de volta na aljava de couro negro e trouxe os cavalos.

Os seus olhos não saíam da estatura imponente à sua frente. A armadura de ataque o impressionava. Um dia teria uma para ostentar frente ao inimigo. As roupas do viajante causavam admiração e estranheza, já que nunca havia visto um homem vestido com os hábitos da civilização. O mais estranho, contudo é que esse homem se dizia um habitante das terras de Ith, como ele.

Desde criança lembrava dos mercenários que partiram para o sul e de como desejara um dia seguir os seus passos em busca da aventura e das batalhas. Ali, à sua frente, estava o primeiro que via retornar.

Recentemente então começaram as visões durante o sono. Ver aquele cavaleiro de costas lhe pareceu, por um instante, uma imagem que já vira durante os sonhos. Mas neles, ele, Haskor, trajava uma armadura cor de ouro.

“Onde estariam os outros?” No sonho havia outros. Outros cavaleiros. “Onde estariam os outros que partiram com Karizem há tanto tempo? Teriam perecido diante das massas do inimigo? Teriam seguido em busca de mais batalhas? Estariam à procura de tesouros fabulosos nas terras além do rio Navctha, atrás dos Picos dos Deuses de Ébano? Estariam eles, neste momento, ostentando armaduras de prata cravejadas de pedras, comandando exércitos de bravos guerreiros pelas Montanhas Anãs ou para dentro do Vale dos Rubis? Teriam sucumbido à escravidão dos servos do mal e seus demônios? Teriam conhecido os elfos?” Haskor sonhava...

A mente do jovem bárbaro não conseguia se conter à espera das histórias fantásticas que aquele estranho homem de olhos escuros teria para contar ao povo de sua aldeia natal.

Um banquete seria preparado. As mulheres poriam ramos de pinho nos cabelos e teceriam tranças com flores de abrunheiro se já fosse primavera. Enfeitariam-se à procura de seus homens. A grande fogueira seria acesa, os jogos teriam início e as canções de batalhas passadas seriam entoadas. Seria, sem dúvida, uma grande festa.

Adiantou-se em soltar as rédeas do cavalo negro do viajante e de seus animais de carga. Seguiu então, montando um dos garanhões que seu irmão Karmiza retirara de trás dos arbustos.

Atrás de alguns últimos galhos enregelados de árvores, no topo da elevação, via-se o início de uma planície sem fim, que se perdia no horizonte branco de gelo. Karizem vislumbrou então um risco cor de prata. Era o rio Ogreh, que se misturava, contorcendo-se na claridade, enquanto afinava até sumir ao longe, no norte claro.

A vila surgiu seguindo uma sebe cinzenta de pilriteiros que floresciam brancos na primavera, antes que as folhas retornassem. Ith parecia a mesma. Não mudara quase nada de fato, pois continuava calma e opaca como sempre. Uma paliçada com cerca de setenta construções ou, depois de tanto tempo, algo mais que isso. Feitas de pedras, palha e tábuas. Algumas feitas de troncos com teto de palha ou turfa com grandes cumeeiras altas. Eram estábulos, cocheiras, cercados e torres de vigia, próximas aos troncos fechados das paliçadas.

Havia ainda outras casas dentro da floresta próxima, ocupadas em sua maioria pelos caçadores, batedores e vigias dos Volka, clã de Karmiza e Haskor, que o escoltavam agora. Os Volka eram guardiões ungidos. Deles era o privilégio do primeiro grito de guerra e a eles as lanças deveriam ferir primeiro, no dia da batalha.

A maioria do povo vivia em fazendas planície adentro: caçadores, lenhadores, pastores e agricultores. Cultivavam o trigo, a cevada, o centeio e o lúpulo, ou colhiam ameixas, maçãs, figos... As planícies eram cobertas de relva macia onde quase sempre chamejavam papoulas escarlates. Agora, contudo, estavam secas e queimadas pela neve do inverno que estava nos seus estertores.

Faisões se escondiam em meio aos bosques e codornizes piavam levando suas ninhadas em filas uniformes, comendo frutas e sementes.

Criavam ovelhas, porcos e bois que eram levados a um matadouro no centro da cidade, onde havia um mercado pequeno para os locais, que atraía alguns raros mercadores atrás de mel, tecidos tingidos e couro, além de lã crua. Outros procuravam peixe defumado, farinha, nozes, manteiga e coalhada assim que o inverno ia e mais bezerros nasciam. Umas das especialidades eram as peles perfeitas de animais como o lobo, a marta e o urso, que valiam muito. Traziam para trocar, mais que para vender, tecidos bordados e vidros caros decorados com alpaca, não raramente contendo perfumes que aos de Ith cheiravam estranho. Os dos Volka, contudo, tinham o costume de usar perfume misturado na banha para assentar os cabelos, mas não quando estavam de vigia, pois o perfume poderia se revelar um inimigo. Karizem não usava, nunca.

Os comerciantes traziam ainda argila, calcário, carvão e ferro, além de utilidades como panelas, pedras de amolar, rocas de madeira, peneiras... Vendiam também vinhos e azeite, facas de cabos adornados, couraças de couro duro, ferramentas e pregos. Não havia muito lugar para se comercializar adornos caros de prata ou pedras de valor. As mulheres de Ith não davam importância a isso, nem havia uma casta dominante que impusesse sua autoridade usando roupas e torques de ouro, como no Oeste e no Sul.

Nas casas mais respeitadas, os telhados – muito inclinados para não acumular a neve – assentavam-se sobre paredes feitas de troncos, fruto da antiga habilidade de seu povo em trabalhar a madeira, que era cuidadosamente encaixada com riscos negros de piche e pêlos de cabra, calafetando as frestas para evitar que os ventos frios da respiração dos deuses do gelo resfriassem os lares.

As chaminés de pedras, empilhadas de forma inteligente, soltavam o cheiro da sopa de carne com cebolas no ar de Ith. Algumas carroças lotadas com troncos de pinho descarregavam na frente dos banhos de vapor, onde os homens se reuniam para conversar e relaxar das tarefas do dia, bebendo um caneco de visbadf quente.

Escutava o tilintar do martelo do ferreiro Denjla na bigorna e o relincho de cavalos nas estrebarias atrás do salão dos clãs, onde os conselheiros e os patriarcas se reuniam para decidir os rumos de tudo em Ith.

Em frente ao prédio dos clãs, via sua antiga casa, com o tronco entalhado com as cabeças duplas do Cavalo Fantasma no beiral do telhado de frente.

Ansiava em rever todos: seu severo pai Hellducar, atual patriarca do Clã; sua mãe Kaliah, com lindos cabelos negros; o velho Tellor da floresta, seu antigo mentor informal dos momentos de ócio; seus primos e irmãos de clã...

Via que alguns já estavam à sua espera no centro da praça, devido ao aviso da corneta de Haskor, vários deles empunhando lanças e escudos.

Lá estava o gordo Vanil, filho de Hugree e irmão da bela Deryla; Jhuiyt, do Clã de Wrethster, e seu arco de flechas mortais às costas, provavelmente indo para uma caçada. Havia outros que não reconhecia também, por ainda serem muito jovens quando partira do lar, como o irmão de Karmiza.

Seus rostos eram de curiosidade, no mínimo. Olhavam para o centro dos olhos de Karizem, que trazia o elmo sob um dos braços. Tentavam adivinhar quem era o forasteiro que chegava escoltado pelos dois vigias da trilha do rio. Escutavam-se muitas vozes com a chegada de mais gente que se acumulava ao lado do estreito caminho deixado para a passagem dos cavalos.

As crianças, com seus arcos de brinquedo na mão, atiravam setas inofensivas no forasteiro, bradando seus imaginários gritos de guerra como uma horda de goblins. Algumas acertavam os batedores e Haskor cuspiu, soltando várias pragas para os pequenos. Karizem sorriu. O batedor dos Volka era quase um garoto também. Talvez nascido há dezesseis ou dezessete invernos.

Escutou alguém no meio da multidão gritando seu nome. Fora enfim reconhecido.

─ Karizem dos Bittur!

Seu tronco se torceu como um raio para então ver, na soleira da casa de bebidas, o sorriso aberto e o punho cerrado, erguido num braço hercúleo de um jovem gigante de cabelos castanhos-claros, soltos e desgrenhados, raspados nas laterais da cabeça, que se apoiava no outro braço em uma lança de arremesso. Num instante, Karizem reconheceu que era Cetturk quem acenava, o filho da irmã de sua mãe, a qual tivera um triste destino.

Na época em que viajara, não era mais alto que a sela de um cavalo.

Karizem respondeu com um ligeiro semicírculo nos lábios, que logo foi redirecionado para dezenas de outras saudações mais moderadas. Às vezes, um leve movimentar de dedos numa mão quase levantada; às vezes apenas um brilho diferente no olhar, que poderia ser considerado como boas-vindas. Às vezes alguém cuspia no chão com olhos fixos nele, demonstrando a desapovação com sua volta. Parentes e amigos deles desafortunadamente não voltariam.

Mas havia mais acenos que censuras. Nunca antes imaginara que seu povo pudesse ser tão amistoso. Nada comparado aos povos do Oeste, mas muito mais comovente, pois era seu povo.

Ali estava a maioria das pessoas de quem se lembrava e outros de quem talvez não recordasse. Mas logo à sua frente, perto da fonte, estava alguém que conhecia, e muito!

Se alguma vez, durante suas longas jornadas pelos vales do sul, o guerreiro sentira saudades de alguém, fora da própria mãe. Kaliah, com seus longos cabelos negros, agora tocados de prata, o observava fora da multidão com seus olhos melancólicos e estreitos. Tinha os braços enrolados no corpo, coberto com uma manta marrom de pêlos espessos, com bordados amarelos e lilases.

Um fio de lágrima escorreu de um dos olhos da mulher, enquanto Karizem apeava e atravessava as últimas passadas que os separavam. Karmiza e Haskor seguiram adiante.

Ajoelhou-se defronte dela com a cabeça baixa, sem dizer uma só palavra e atirando o elmo longe. Retirou rapidamente as luvas e enfiou a mão dentro da túnica, sacando um medalhão de ferro maltratado, entalhado com runas antigas, pendurado em um colar de anéis de cobre.

Segurou-o com as duas mãos e o levantou como se pesasse cem vezes mais. Os músculos retesados pela emoção e não pelo peso demoraram a se distender.

─ Trago-te de volta o que me deste ao partir. Cumpro a promessa que te fiz, minha mãe.

Num instante, defronte dos olhos comovidos da mulher, cenas antigas se desenrolaram em sua mente.

Uma mulher ainda jovem, recém-casada com um bravo guerreiro predestinado a se tornar o próximo líder do Clã dos Bittur. A mulher era filha de uma antiga serva da deusa Tra, a quem fora oferecida como afilhada.

A jovem Kaliah orava e acendia ramos aromáticos em orações à deusa ─ proibida, há muito, quando Áster havia caminhado pelo Norte. Mas algumas poucas das antigas sacerdotisas de Tra ainda existiam.

Kaliah assim se chamava por causa da deusa. Ka fora o primeiro som criado no mundo, segundo a antiga lenda, e a mãe de Kaliah o havia escolhido para nomear a filha, que um dia destinaria à deusa.

Quando Kaliah ficou grávida, orou suplicando por um menino, como era do desejo de seu marido Hellducar. A deusa lhe respondeu afirmativamente em sonho, com a condição de que a criança tivesse o som inicial no nome. Se assim fosse, nasceria um menino predestinado a grandes feitos. Contudo, teria na vida um antagonista, que se oporia a ele até o dia em que o braço mais forte vencesse.

Hellducar planejara que o filho se chamasse Volcantro, como o bisavô da criança, mas desconhecia muito da fé de sua mulher e do que fazia quando se recolhia para suas orações secretas. Sem saber o porquê da exigência da esposa, optou por aceitar que ele se chamasse Karizem. Nomes não eram tão importantes e Hellducar tentava seguir os preceitos de Áster que incitava ao rompimento das antigas tradições bárbaras. Não imaginava que fazia exatamente o contrário, e amava muito a esposa. Queria que ela fosse feliz.”Um nome não trazia poder aos filhos do Norte, uma espada, sim”, dizia Áster.

E assim, Kaliah criou o filho até se tornar capaz de receber o treinamento de guerreiro por um mentor, escolhido pelo pai, como era comum. Kaliah temia, contudo, o destino que a deusa reservara ao filho. Tratou de secretamente levá-lo a presença de um velho arcano, que vivia em meio à floresta, para que este o protegesse com sua arte e ensinasse o menino como lidar com o invisível. Era Tellor esse segundo mentor.


Quando Karizem partira para as guerras, Kaliah achou que encontraria lá o profetizado oponente. Agora ela rezava para que a volta do filho significasse que ele havia sido o vencedor e que tudo já estivesse resolvido, e ali, à sua frente, via enfim o filho ajoelhado, segurando o medalhão de ferro. “Graças a mãe-deusa Tra!”

Alguém do distante mundo chamado civilizado talvez se sensibilizasse a ponto de deixar uma lágrima de alegria, incitada pela saudade, rolar pela face, mas um guerreiro do Norte não possuía tal capacidade, mesmo que o coração de Karizem não parecesse nesse momento ser a rocha de antigamente. E os de longe ainda os chamavam de bárbaros... Karizem assim se identificava sempre que tratava com um sulista ou um habitante do Oeste. Sentia orgulho por pertencer ao Norte. Se de bárbaros os chamavam, de bárbaro queria ser chamado, pois isso o fazia diferente deles, era o que importava.

Comera a comida estrangeira, aprendera seus hábitos e suas línguas e, mesmo depois de tudo isso, preferia continuar sendo chamado de bárbaro. Queria isso!

Seu peito ardia de uma comoção nunca antes sentida, comparável apenas à de quando dali partira. Mas, naquela época, a euforia da partida inibira grande parte desta emoção.

Kaliah abaixou-se, abraçando seu único filho e levantando-o do solo, só para ser esmagada contra o peito largo do único exemplar de sua minguada prole. Era um abraço firme e poderoso como os elos de uma corrente. Com a dose certa de ternura de um filho para com sua mãe.

Karizem beijou a fronte clara emoldurada por cabelos lisos e soltos. Aquela mulher magra choramingava pelo seu retorno, dando vivas a um deus da neve qualquer, a quem tinha feito talvez um pedido que não acreditava que seria atendido.

Talvez não esperasse por este instante em especial, sabe-se lá por que motivo. Talvez sempre o tivesse esperado. A cada dia, a cada pôr do sol, a cada primavera e a cada inverno...

Naquele instante, o peito de Karizem diria a ela que nunca deveria ter saído do ventre de sua gente, mas em seus pensamentos havia muitas histórias para serem contadas. Aprendera muitas coisas, lutara muitas batalhas e ainda estava vivo para cantá-las.

A distração durou ainda alguns momentos de perguntas rápidas e respostas ligeiras. Foi só então que percebeu a ausência de Hellducar.

─ Onde está o velho beberrão, Kaliah? Por acaso já comemora a volta do seu campeão às terras de Ith? Não tem tempo de retirar a boca da borda de sua caneca? Perguntou olhando ao redor, como que procurando encontrar o pai entre as pessoas que já se dispersavam.

─ Se falas de teu pai, ele te espera em casa, filho meu.

As palavras de Kaliah pareceram estranhamente amargas para o recém-chegado.
De súbito, Karizem e Kaliah foram bruscamente interrompidos pelo tufão provocado por dois homens que, com sorrisos, tapas e apertões, se acercavam do viajante com um esfuziante calor, bem mais intenso do que a recepção do povo em geral.

Eram Cetturk e Elawjorg, este um antigo companheiro de travessuras e duelos com espadas de madeira em tempos de criança. Cresceram juntos nos campos de caça e nas disputas de acrobacias em cavalos selvagens.

Não o acompanhara como os outros dez às guerras por preferir ficar e continuar os ensinamentos para se tornar, um dia, o chefe de seu clã.

Na época em que partiu, Karizem não o recriminou pela sua decisão. Era seu melhor amigo e sempre estiveram juntos em tudo o que fizeram. Elawjorg o vira nascer e já salvara sua vida uma vez. Vários ficaram para garantir a segurança da aldeia e Elawjorg era o melhor de todos eles, melhor mesmo que todos os que partiram pensando nas aventuras.

O chefe de um clã deve empunhar sua espada em defesa dos seus e ele havia sido corajoso o suficiente para se mostrar digno do papel que, sem dúvidas, viria a desempenhar como um grande patriarca. Papel este que Karizem jogara fora quando não aceitara os apelos de seu altivo pai.

Elawjorg era pouco mais baixo que Karizem e tinha os cabelos amarelos, quase brancos, como um legítimo membro do Clã do Leão Negro ─ fera do céu, que traz a noite para que os animais possam se alimentar sem o infortúnio causado pelos barulhos e cheiros dos homens e para que esses últimos possam dormir, enquanto os olhos dos que um dia quiseram desafiar a fera gigante brilham em seu estômago preto, que cobre o firmamento.

O guerreiro louro trajava um manto feito de lã de cabras montesas com enfeites bordados, indicando que em breve seria mais um membro do Conselho dos Clãs. Suas mãos fortes seguravam os ombros do amigo e sua boca dizia coisas, rápidas demais para que pudessem sem entendidas todas de uma vez. Seus olhos azuis estavam brilhantes e suas barbas e bigodes curtos já estavam enfeitados com as bolinhas do próprio cuspe, tal a sua eloqüência.

Enquanto isso, Cetturk os puxava em direção à casa de bebidas, rindo como somente os que estão sob os efeitos do feitiço do álcool podem rir. O rapaz crescera e se tornara um guerreiro, seu físico era o de um touro. O rosto continuava a ser o do garoto que sempre queria acompanhar os maiores em suas brincadeiras e caçadas e que acabava sempre se envolvendo em alguma briga, que tinha que ser resolvida por Karizem.

─ Acalmai-vos, cães sarnentos! Agora que retornei das piores guerras do mundo, vós quereis tirar minha pele?! Deixai-me primeiro ver meu pai Hellducar, antes que ele próprio venha buscar meu couro, que acabará virando um tapete sob seus pés. Logo mais à noite festejaremos até o dia clarear, na festa que estou certo que ireis me preparar, é claro! ─ um par de reluzentes lingotes de ouro foi posto na mão de um deles, para as despesas.

As “palavras mágicas” de Karizem surtiram efeito imediato. Os dois companheiros saíram em disparada, em direção ao armazém de Routher, o mercador, para arranjar tudo de que se precisaria para a grande festa.

Só então pôde virar-se e novamente dar atenção à Kaliah, que acompanhara os rodopios dos três a alguns passos. Seus olhos de mãe, embora demonstrassem grande alegria, não podiam ocultar uma ruga que denunciava apreensão.

─ Teu pai quer ver-te, filho ─ falou suavemente, estendendo-lhe a mão.

Há muito não via sua mãe, mas aqueles olhos diziam que nem tudo estava bem. Sua voz era pausada e seus gestos leves demais para uma mulher que trabalhava duro nas tarefas diárias e que, desde o nascimento do filho, nunca mais desfrutara de uma saúde perfeita. “Estaria o pai adoentado?”

Sem dúvida Hellducar já sabia, naquele momento, quem era o estranho que chegara em roupas de cavalheiro.

Não tinha vindo recebê-lo pelo mesmo motivo porque o desaprovara na partida, imaginou Karizem, que perdeu o leve sorriso no rosto. Suas feições retornaram, como de hábito, ao semblante carrancudo com os olhos de jaguar.

Sua mãe o conduzia devagar pelo braço esquerdo, enquanto ele puxava com a mão direita as rédeas do primeiro cavalo.

Ela fez um gesto para que ele deixasse que um jovem, pequeno demais para erguer uma espada, cuidasse dos cavalos. Em seguida, chamou um outro, este já com alguns fiapos do que viria a ser, dentro de mais alguns invernos, uma grossa barba castanha. Karizem ordenou que descarregasse os animais, para que o mais novo pudesse levá-los à estrebaria e tratar deles.

Não era necessário pagar por serviços assim. Para o povo de Ith, todo jovem, até que pudesse carregar uma espada presenteada pelo seu responsável no clã, deveria fazer esses favores aos mais velhos. Isso significava integração na comunidade. Se quisesse fazer parte dela, o jovem teria que trabalhar por ela desde que começasse a andar. Era a lei.

─ Estás mais alto, meu filho. Mais bonito também ─ disse a mulher, que dava um passo maior para que pudesse transpor uma poça de água marrom no solo molhado pela neve que já derretera. ─ Esperei todos os dias pela tua volta. Cada vez que via uma nuvem de pó se elevar no horizonte, meu coração batia no compasso do galope do cavalo que se aproximava. Sentada na cadeira em frente à varanda, eu olhava o sol se pôr e pedia a Skulrjkard que não te levasse deste mundo sem que eu antes pudesse tê-lo perto de mim novamente. O teu lugar é aqui, perto de teu pai, de tua mãe e de teu povo.

Os ligeiros vincos que se formavam ao redor dos olhos de Kaliah, enquanto falava, não revelavam sua verdadeira idade. Ainda parecia uma moça com seus lábios finos e a pele branca; que destoava da tez morena do filho, que viajara pelos vales quentes e pelos litorais do oeste debaixo de um sol tão forte que derreteria todo o gelo do Norte, da noite para o dia.

Nunca, em toda a vida, aquele povo seria capaz de imaginar que o ar podia ser mais quente que o interior de suas casas e que os céus pudessem ser como os da primavera quase todo o tempo. Que a neve não caía suavemente, em forma de plumas de cristal, e sim como água morna e torrencial.

Os olhos profundos de Karizem se juntaram aos de sua mãe, mas seus pensamentos por um momento se prenderam orgulhosos na glória das batalhas já vividas e na oportunidade de poder voltar a elas e padecer sob a clava do inimigo como o mais digno dos guerreiros.

De súbito, percebeu que o ouro que juntara pouco lhe interessaria se não pudesse ele próprio tê-lo tirado das fortalezas destroçadas de reinos distantes. Seu coração nunca se contentaria se não pudesse beber de novo o vinho doce dos Palantares no sul, ou desfrutar dos prazeres das mulheres de Badir, na costa-oeste, com seus lábios macios e vermelhos como as folhas das faias no outono e seus olhos verdes como as mesmas folhas jovens na primavera. Embora ansiasse por este retorno triunfal a Ith, não podeia deixar a sensação de que algo bom ficara para trás, e que perdera sua liberdade.

─ O que foi filho? De repente ficas distante. Pareces lembrar coisas que perdeste e de que ainda precisas. Como se tivesses asas e elas teimassem em erguer-te do solo, sem que te desses conta...

As palavras de Kaliah morreram em sua boca. Sentia que não era o momento de falar sobre assuntos que não se mostravam ainda, mas que sentia tênues no ar.

No instante em que galgavam o primeiro degrau da velha cabana de troncos, a mulher lhe acariciou os cabelos caídos na face e docemente lhe falou:

─ Desculpe, querido. Não dês ouvidos a esta mulher tola que nem recebe direito seu único filho e já o enche de lamúrias. Mas, mais do que isso, quero lembrar-te que estás em tua casa e te peço que entendas teu patriarca. Sei que sabes o que tentei inutilmente te esconder, por uns breves instantes talvez. Teu pai sentiu muito tua partida. És seu único filho e deverias entender o que significava para ele ter-te como sucessor no clã. O homem áspero e rude que conheceste não mudou. Está, sim, mais azedo; como o vinagre que não virou vinho durante o tempo de descanso.

As palavras não eram como as de um lamento. Sua ligeira ira transparecia no seu tom, recriminatório ao velho Hellducar. Deviam ter discutido por várias vezes, toda vez que o nome de Karizem era mencionado. Mas as energias empregadas nas declarações da mulher eram até tranqüilizadoras.

Significava que a angústia da partida fora substituída por uma recriminação mais fácil de ser suplantada pela convivência. Conhecia o guerreiro que enfrentaria agora e, contra ele, uma espada ou ainda uma língua afiada não tinham serventia alguma. Era o lobo em sua toca. Era o patriarca do Clã de Bittur.

A autoridade do senhor do clã nunca devia ser contestada, mas fora exatamente o que Karizem fizera, com o calor da juventude ainda nas veias. O agravante era que se tratava do próprio pai, que sempre o havia tratado com justeza e companheirismo. Abandonara toda uma vida de preparação para chefiar os seus, ao contrário de Elawjorg. Para comandar tropas de guerreiros sem nome e com o aço nas mãos. Optara pelo prazer de empunhar uma espada e ter um cão de guerra como companhia sob a lua branca das florestas, sob o canto das fadas das faias.

Decidira conhecer o mundo de que sempre ouvira falar nas histórias dos guerreiros e nos hinos das batalhas antigas. Conhecera as criaturas da floresta, o País dos Anões e povos muito diferentes em aparência e costumes.

Tinha visto os magos do mal comandando exércitos de mortos-vivos e descobrira como, até mesmo um filho do inferno, tem as entranhas moles na ponta de uma boa espada. Uma espada empunhada com a força da vontade que faz com que o espírito de um homem se torne mais forte que o aço e que tenha asas para voar mais alto que o falcão. Era só pisar no chão de casa e uma nostalgia absurda o acometia. Karizem impacientou-se.“O que estaria acontecendo?”

Kaliah entrou primeiro, dizendo coisas que o recém-chegado não escutou, imerso na sua luta da mente com o espírito, e então se calou, pois seus olhos se fixaram na grande cadeira de peles e troncos grossos, em frente às chamas da lareira.

Havia um homem sentado, que não seria notado senão pela sombra da luz das chamas que balançavam na parede escura e forrada com peles.

Acima, o escudo de bronze com a efígie do cavalo fantasma com dois machados de guerra cruzados atrás.

Rodeando toda a sala, havia inúmeras cabeças de animais, empalhados como troféus das muitas caçadas. A mesa de ébano redonda, onde se banqueteara muitas vezes com os manjares de sua mãe, ainda estava no mesmo lugar, com os mesmos assentos de madeira negra em volta.

O ambiente simples e o aconchego familiar lhe agradavam profundamente, mas sua atenção continuava fixa na figura sentada. A sombra se moveu após atiçar, em meio a fagulhas, os troncos na lareira.

Um homem quase tão alto quanto Karizem se levantou sob um casaco de peles escuro, comprido até o chão e abotoado com tiras de couro. Tinha os mesmos olhos enregelantes, a mesma cor dos compridos cabelos misturada a fios brancos, e feições que, se não fossem pela espessa barba grisalha, revelariam suas semelhanças. Era como ver o futuro num espelho encantado.

A cabeça descoberta mostrava uma ligeira calva sobre um cenho sério de sobrancelhas largas. O grosso torso sob as vestes mostrava músculos ainda fortes o suficiente para empunhar com bastante desenvoltura um dos machados de combate que ora enfeitavam a parede principal da sala.

Tinha na mão direita uma caneca com hidromel fumegante, que foi posta devagar sobre a mesinha ao lado do assento, sem que o olhar fosse retirado do homem que acabava de adentrar a sala.

O olhar era como o de um urso prestes a sair de uma toca, quase palpável no ar. Karizem se sentia pequeno de novo. Parecia haver coisas demais para serem ditas e disposição de menos para dizê-las. Sua face não expressava nada além de uma profunda animosidade. Não se podia ver sua boca por sob os pêlos do bigode, mas uma voz grossa como o trovão pausadamente ecoou no ar:

─ Mulher, há um visitante em nossa casa. Veja se ele tem fome ou sede e dê-lhe de comer e beber. Depois verifique se está cansado e providencie para que tenha onde repousar. Veja se seus cavalos estão bem cuidados e cuide para que sua bagagem seja trazida aos seus aposentos para que, após lavar-se, possa recompor as forças e seguir jornada.

─ Não sejas rude, Hellducar dos Bittur! Teu filho retorna de agruras e privações. Deveis conversar para que o passado possa ser definitivamente esclarecido. Não passei longos invernos à espera dele para que o enxotes, como a um cão, do lar ancestral que o ímpeto de um jovem levou a pôr de lado, por uma razão que somente um guerreiro pode conhecer.

─ Acalma-te, minha mãe. Deixa que eu fale com Hellducar a sós ─ disse Karizem. ─ Ele não é apenas meu pai, é também o meu patriarca. O líder do clã ao qual pertenço e não negaria os ouvidos às minhas saudações...

─ Não ouses falar sobre este clã, verme! Não pertences mais a ele desde o dia em que pisoteaste o escudo dos antepassados e os preceitos da tribo. És um renegado sem nação ou lugar, que não tem respeito com os patriarcas. Saia de minha casa antes que te esfole como a um cão zodakiano.

Um punho fechado deslocou o ar e atingiu o queixo de Karizem, que não teve tempo sequer para piscar. Voou, como um pássaro não faria melhor, por sobre a mesa de ébano, destroçando alguns potes e enfeites de barro, e caindo do lado oposto, espalhando os cacos das cadeiras por todo o salão.

O coice de um touro certamente não seria mais suave. A visão de Karizem estava escura e os olhos miravam o teto enfumaçado por entre explosões de estrelas. Os ouvidos escutavam sinos inexistentes, que badalavam de dentro para fora de seu crânio, que parecia rachado. Seus dentes por pouco não fizeram parte dos cacos misturados sobre o tapete marrom, de pele de cabras, no chão.

De forma alguma conseguiria coordenar seus movimentos. Sua nuca não obedecia quando tentava levantar a cabeça. Suas têmporas latejavam como tambores de festa.

Ainda não se encontrara quando sentiu a temperatura fria da água que caía sobre seu rosto com a intenção de reavivá-lo. Só então começou a escutar a voz da sua mãe que, com os olhos arregalados, não sabia se continuava a praguejar contra seu marido ou se tentava se desculpar por ele, enquanto passava a mão pela testa molhada do filho.

─ Queres matá-lo?! Não tens noção da força que tens. Poderias ter fendido seus ossos e quebrado seu pescoço!

─ Não duvido nada! ─ redargüiu o homem que permanecia de pé. ─ Grande guerreiro... Pois sim! Deve ter passado todo este tempo pungando bolsas e mendigando moedas, nos mercados do Sul. Caso enfrentasse o inimigo, teria virado carniça sem que os próprios abutres esperassem a comida.

Karizem, que já recuperava os primeiros movimentos, não conseguia falar para revidar os insultos. Sentia que sua boca estava cortada por dentro e que o gosto do próprio sangue escorria pela garganta. Por entre a escuridão e os lampejos que ainda espocavam ante seus olhos, balbuciou algumas palavras incompreensíveis, enquanto se sentava no chão com a ajuda da mãe.

─ Pelos… deuses do gelo! É assim que esse… homem… recebe o próprio filho? Parece que um dragão enfurecido acertou sua cauda em minhas fuças ─ praguejou finalmente o atordoado guerreiro.

─ Se são apenas saudações que te trazem à minha casa, então que sejas breve. Não tenho tempo a perder ─ disse o velho pai por entre os pêlos do rosto.

─ Espera! ─ bradou uma voz feminina. ─ Disseste que podia preparar-lhe comida e que teria um lugar para repousar por hoje. Esta não é a maneira de um chefe de clã agir com um dos seus, mesmo sendo ele um filho que não se julgava na obrigação de satisfazer o destino para ele traçado e imposto por alguém, contra sua vontade.

─ Mãe?

─ Cale a boca! ─ disse a mulher, que tentava amainar as coisas. O marido continuou.

─ Alguém? Estás louca, mulher? Por acaso não foi o próprio Conselho dos Clãs quem concedeu a esse… traste, o direito de um dia empunhar o escudo do cavalo de duas cabeças? Ele era o “Espada sem Bainha” dos Bittur. Aquele que deveria estar presente para fazer a justiça da espada caso fosse necessário. Nem mesmo eu tive essa honraria!

Karizem, ainda tonto, parecia ficar pior com a discussão de lado a lado, mas sabia muito bem o que estava acontecendo agora. Já vira esta cena outras vezes; por outros motivos, quando criança, antes de partir. As palavras saíam da boca de Kaliah com a velocidade do vento e a clareza de pensamentos dos homens versados nas artes da escrita e da alquimia.

Os ouvidos de Karizem, cheios da razão com que a voz da mãe argumentava com Hellducar, o faziam pensar que se não fosse ela uma mulher, talvez este clã tivesse um outro patriarca. A idéia o fez principiar uma ligeira risada, abortada imediatamente por uma pontada na base do queixo.

─ Que inferno! Estou rodeado de facínoras ─ gritou o ancião. ─ Pois que fique esta noite, então. E se encontrá-lo estirado sobre uma de minhas camas amanhã, eu próprio tratarei de empalá-lo com minha lança!

A mulher se calou embaixo de um suspiro que estufou suas bochechas rosadas. Arrumando os cabelos desgrenhados, olhou para Karizem que, enfim de pé, se apoiava na parede com um braço enquanto que, com a outra mão, segurava a face, como que solta.

Não conseguiu esperar que o marido entrasse pisando duro em um aposento contíguo, ainda blasfemando, para estampar no rosto um largo sorriso branco. E animou Karizem:

─ Sabia que poderia convencer teu pai a deixá-lo ficar pelo menos por hoje, querido. Amanhã, um outro soco permitirá que você fique de vez. Sei que no fundo ele está feliz que tenha retornado.

Karizem arregalou os olhos.

Um outro soco daqueles lhe tiraria ou a cabeça dos ombros, ou a razão de dentro dela; e se aquela era a demonstração de felicidade de alguém, nem sequer podia imaginar como teriam se tornado os acessos de fúria bárbara do velho Hellducar.

Sem dúvida, tinha ficado muito tempo fora para saber as respostas para tantas perguntas. Tornara-se um civilizado.


CONTINUA NO CAPÍTULO 3: O SENHOR DA GUERRA (...e é onde a ação realmente começa. Um início bem água-com-açúcar, só com alguns toques do que acontece no sombrio mundo de Karizem, mas já dá para vislumbrar que por aí bem muita coisa! E você, logicamente, como um leitor fanático de literatura de fantasia, vai comprar o livro para matar sua curiosidade. Em contrapartida, vai ajudar este escritor fanático por escrever fantasia... Brincadeira, mas se você quiser comprar o livro, vou gostar MUUUITO!). Aguarde só mais um pouquinho. Abraços!

ALBARUS ANDREOS